O que é a cegueira espiritual?
A cegueira espiritual nada mais vem a ser do que certa estupidez, um embrutecimento do espírito que impede de ver e degustar as coisas divinas. A cegueira espiritual pertence particularmente à inteligência, e é um endurecimento da vontade. Uma e outra coisa são pecados, a pena do pecado e um princípio de pecado. A cegueira espiritual, que afasta somente a Deus, porque Ele é a verdadeira luz, segundo diz Sano Agostinho, é um pecado pelo qual se deixa de crer em Deus; é a pena do pecado, porque castiga o coração orgulhoso, atraindo para si, com justiça, o ódio de Deus; é um princípio de pecado, quando o coração, enganado pela paixão, leva a cometer o mal[1]. Assim, os judeus, cegos pelo erro e pelo endurecimento do coração, perseguiram a Jesus Cristo, e deram-Lhe a morte.
A cegueira espiritual é um crime
O cego espiritual faz um deus de sua paixão, na qual põe o seu fim… não tem fé…
A cegueira espiritual é o princípio de uma infinidade de pecados; mas o que é princípio de um grande número de pecados, muitas vezes graves, é, em si mesmo, um mal gravíssimo. A cegueira do espírito vem da vontade endurecida no mal. Por causa dessa cegueira, já não se sente nada, nada se vê, nada se teme, já não se pratica a virtude; cai-se na indiferença, na incredulidade e na impiedade…
O cego espiritual não compreende nada. O cego, diz Santo Agostinho, não vê a luz do sol, ainda que esteja rodeado de seus brilhantes raios; o cego espiritual não vê, tampouco, a luz de Deus[2]. O homem estúpido desconhece as obras magníficas do Criador, diz o Salmista: o insensato não as compreende: Vir insipiens non cognoscet, et stultus non intelliget haec (Sl 91, 7). Porém, esta loucura voluntária é um crime enorme. Jesus Cristo, o Evangelho, a Igreja, o Dogma, a moral, os Sacramentos, a graça, a santidade, as recompensas, não são mais do que trevas para o cego espiritual.
Mas, não ver fatos e verdades tão necessários à salvação, cuja existência descansa em motivos de credulidade indestrutíveis, é ser culpável.
Enquanto os cegos de espírito, as coisas da religião são para eles como as palavras de um livro selado, diz Isaías: “Et erit vobis visio omnium sicut verba libri signati” (Is 29, 11).
Esta cegueira é voluntária
A cegueira espiritual é voluntária, e isto é o que a faz mais culpável. Não quis se instruir para agir bem, diz o Profeta: Nolite intelligere, ut bene ageret (Is 35, 4).
O brilho das obras de Jesus Cristo, diz São Cirilo, não deixavam dúvida possível aos que não tinham o espírito corrompido; porém, como o maior número se encontrava neste estado, não queriam ver: Claritas operum Christi omenm quaestionem solvebat apud eos qui nom erant mentibusperversis (Comment.).
Quando Jesus Cristo aproximou-Se, diz São Lucas, viu Jerusalém e chorou sobre ela, dizendo: Ah, se ao menos soubesses, neste dia, o que te pode trazer a paz! Porém, agora tudo está oculto à tua vista: Ut appropinquavit, videns civitatem, flevit super illam, dicens: Quia si cognovisses et tu, et quidem in hac die tua, quae ad pacem tibi! Nunc autem abscondita sunt ab oculis tuis (Lc 19, 41-42); porque tu não conheceste (isto é, porque tu não quisestes conhecer) o tempo em que foste visitada: Eo quod non cognoveris tempus visitationis tuae (Lc 19, 44).
Ó filha de Sião, a quem amei, honrei, enriqueci, instrui, como não me conheces, porque Me persegues, e te preparas a condenar-Me, a dar-Me a morte e a crucificar-Me? Por ti, baixei do céu para a terra, e encarnei-Me. Por ti, passei minha vida em trabalhos contínuos, na pobreza e as dores; visitei-te, ensinei-te, curei a teus leprosos, a teus enfermos e a teus demoníacos; ressuscitei a teus mortos: e tu foges de Mim, desprezas-Me, persegues-Me e desprezas-Me. Porém, até isto está oculto à tua vista, porque tu não quiseste Me acolher e crer em Mim.
A Encarnação, a pregação de Jesus Cristo, sua paixão e ressurreição, foram, pois, coisas ocultas para os judeus endurecidos; este povo deicida nem sequer conheceu sua própria perfídia, nem sua cegueira e ingratidão. E uma terrível vingança caiu sobre Jerusalém, arruinada completamente por Tito.
Encontrei, em vossas praças públicas, um altar que tem esta inscrição: Ignoto Deo: ao Deus desconhecido; diz São Paulo aos Atenienses (At 17, 23). Eis aqui, diz Tertuliano, o crime supremo daqueles que não querem reconhecer Aquele que não podem ignorar: Et haec est summa delicti nolentium recognoscere quem ignorare nonpossunt (In Apolog.).
Que estupidez é essa! Exclama São Pedro Crisólogo. Onde estamos? Que sonho é este que nos sobrecarrega? Que esquecimento mortal apoderou-se se nós? Por que não trocamos a terra pelo céu? Por que não compramos os bens eternos com os que temos? Por que não procuramos para nós as riquezas que hão de ser duradouras, ao invés daquelas que passam tão prontamente?[3]
Filhos dos homens, diz o Senhor pela boca do Real Profeta, até quando tereis o coração pesado? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Filiis hominum usquequo gravi corde? Ut quid diligit vanitatem, et quaeritis mendatium? (Sl 4, 3). Ah, meu povo não ouviu minha voz, Israel não me escutou: Non audivi populus meus covem meam. Et Israel non intendi mihi (Sl 80, 12).
E eles disseram: o Senhor não nos verá; o Deus de Jacó não terá conhecimento disso. Vós, que sois insensatos em meio do povo; homens cegos, quando tereis inteligência? Aquele que formou vosso ouvido não há de ouvi-los? Aquele que fez vossos olhos não há de ver-vos? Aquele que castiga as nações não há de castigar-vos? E aquele que ensina aos homens a ciência não há de compreender-vos?[4]
Os ímpios serão pelo Senhor reduzidos a silêncio em meio das trevas, diz o Primeiro Livro dos Reis: Impii in tenebris conticescent (Sl 2, 9). Calaram-se, porque não acharam desculpas para sua cegueira. É cego, diz São Gregório, aquele que quer ignorar a luz das contemplações celestiais; aquele que, submergindo nas trevas da vida presente, e não mirando jamais com amor a verdadeira luz, ignora de que lado encaminha suas obras[5].
Ouvireis e ouvireis mais, e não querereis entender; e vereis o que apresentarei a vossos olhos, e não quereis dar importância a isso. Esse povo embota o coração, tapa suas orelhas, e venda-lhe os olhos; a fim de que não vejam com seus olhos, nem com seus ouvidos ouçam, nem compreenda com sua inteligência, e converta-se, e eu tenha que lhe curar. Este é um vaticínio ou profecia da dureza e cegueira dos judeus (Pastor., c. VI, 10).
São necessárias duas coisas para a cegueira espiritual:
Uma afeição perversa da própria vontade, que impede de receber a verdadeira luz, por cujo meio Deus propõe, desenvolve e confirma suficientemente, seja por si mesmo, seja por meio dos profetas e apóstolos, ou da Igreja docente, as verdades necessárias à salvação. Então, imita-se aquele que fecha sua janela para excluir os raios do sol.
É necessária a privação da luz divina, privação que a vontade perversa sempre acarreta. Então, acha-se o homem na impotência moral de perceber a verdade. Citaremos um exemplo? Os judeus, vendo que Jesus Cristo fazia tantos milagres, deviam se persuadir que estavam obrigados a crer que era o Messias; porém resistiram e, assim, ficaram cegos. As causas desta resistência eram sua avareza, sua ambição, sua inveja, seu orgulho, etc., que Jesus Cristo lançava-lhes ao rosto.
Cega, Senhor, o coração deste povo, diz Isaías: Excoeca cor populi hujus (Is 6, 10), isto é, permite que esteja cego.
Falando com propriedade, o homem cega-se e endurece-se diretamente a si mesmo. É o que nos diz, em termos formais, o livro da Sabedoria: Excoecabit enim illos malitia eorum: Sua malícia cegou-lhes (Sb 2, 21). A causa positiva da cegueira espiritual é, sem dúvida, a malícia daquele que sofre este castigo. Porém, Deus não cega mais que indiretamente, e indiretamente também endurece; aparta, pouco a pouco, aos ímpios da luz da verdade e da graça, a fim de castigá-los por seus pecados; Ele permite que, em ocasiões específicas, estes sejam arrastados ao erro e à cegueira.Escondeu-se-lhe o sol sendo dia, disse Jeremias; Occidit ei sol, cum adhuc esset dies (Jer 15, 9).
Todos os cegos espirituais, diz São Cipriano, acham-se privados de inteligência e de sabedoria como os judeus; indignos da vida e da graça, tem-na ante seus olhos, e não a veem (Epist.).
Visível para os que creem, Jesus, diz São Leão, oculta-Se aos que Lhe perseguem pelo pecado: Jesus credentibus manifestus, et persequentibus occultus (Serm. In Nativ.). Estão feridos de cegueira de espírito, acrescenta aquele Padre, a fim de que não compreendam a gravidade de seus crimes e não os chorem: Percussi sunt animi coetitate, ut nec intelligant delicta, ne plangant (Ut supra).
Ante a ressurreição de Lázaro, tão pública, tão conhecida, tão milagrosa, fato que não se podia ocultar nem negar, sabeis, diz Santo Agostinho, o que inventaram os judeus? Tomaram a resolução de matar aquele homem. Ó louco pensamento e cega crueldade! (Homil. in Evang.).
Não vemos, porventura, a cada dia, os cegos de espírito, os voluntários que se ocultam da Luz? Não são, por acaso, aqueles que fogem do ensino da Palavra de Deus, dos santos Ofícios e da Igreja? Igualmente, podemos dizer dos jovens que não querem receber bons conselhos de um pai, de uma mãe, de um amigo, de um sacerdote, que se partam da confissão, que se expõem temerariamente às ocasiões próximas de pecar. E aumenta também o número dos pais negligentes, débeis, que não repreendem, senão raras vezes e com brandura, a seus filhos extraviados, etc.
O que o pecador elege
O pecador não conhece perfeitamente a malícia do pecado, pois, ao vê-lo tão horrível, tão cruel etc., nunca teria o triste propósito de entregar-se a ele. O pecado engana-o, cegando-o.
Não compreende o que lhe faz pecar, porque opera contra as luzes de sua inteligência.
Antigamente, não éreis mais que trevas, diz São Paulo aos Efésios: Eratis aliquando tenebrae (Ef 5, 8)., isto é, pecadores idólatras. Observai que o Apóstolo chama trevas aos pecados:
Porque os pecadores não querem a luz e buscam as trevas; porque o pecado é o que há de mais vergonhoso, mais vil e mais degradante;
Porque os pecados cegam a razão.
O pecado tem sempre seu princípio ou no erro, ou na imprudência, ou na falta de exame, ou, enfim, na inconsideração da razão e da inteligência. Quando o cometemos, ele tonteia-nos e cega-nos, falseia nossa consciência; e as trevas, em cujo seio havíamos penetrado, aumentam-se mais e mais.
Há somente densas trevas no pecado, diz São Gregório; aquele que o comete, submerge-se na noite mais escura e profunda: In peccatis tenebrae densae; peccata ad imas et summas tenebras ducunt (Moral. lib. III).
Não pequeis, diz Santo Agostinho, e Deus, que é o Sol verdadeiro, jamais deixará de brilhar ante vossa vista; porém, ao contrário, caindo vós, Deus desaparecerá. Se desejais conservar a luz, sede também puros e brilhantes; porém, se preferis as trevas e as paixões obscuras, elas vos submergirão em uma noite profunda, em uma deplorável cegueira[6].
Os pecados chamam-se trevas por sua semelhança com elas:
Como as trevas são a privação da luz, assim os pecados são a privação da graça. Esta é para nossa alma e nosso coração o que é o sol para a terra;
Como aquele que anda nas trevas, longe de ver, dá passos em falso e tem tropeços e caídas, assim também, no caminho da salvação, aqueles que pecam, não veem, caem e se mancham;
As aves noturnas teme a luz que as cega; os pecadores temem a luz de Deus e dos homens, segundo aquelas palavras de Jesus Cristo: Quem obra mal, despreza a luz; foge dela para eu não lhe vituperem, nem lhe repreendam nem lhe corrijam: Qui male agit, odit lucem et non venit ad lucem, ut non arguantur opera ejus (Jo 3, 20).
Os pecados chamam-se trevas porque são obra do demônio, príncipe das trevas.
Porque a maior parte dos pecados comentem-se nas trevas;
Porque os pecados nascem das trevas, isto é, de um erro prático que leva o pecador à crença de que podem seguir os ditames de sua paixão, não importando o quanto desprezível seja, e não obstante a perda de Deus, da alma e dos bens eternos; o que seguramente é a cegueira suprema e uma insigne loucura.
Porque o pecado submerge mais e mais o espírito nas trevas.
Porque o pecado mortal conduz às trevas supremas, àquelas do Inferno.
A luz é saudável e necessária à vida dos homens e à todas as coisas; tanto o é que as trevas são prejudiciais e mortais; assim, a fé e a graça de Jesus Cristo são o manancial da salvação e fazem-nos alcançar a vida eterna, enquanto que os pecados debilitam a alma e causam a sua morte.
Andarão como cegos, porque pecaram contra Deus, diz o profeta Sofonias: Ambulaunt ut coeci, quia Domino peccaverunt (Sf 1, 17).
O caminho que seguem os ímpios está coberto de trevas, dizem os Provérbios; não advertem o precipício no qual cairão: Via impiorum tenebrosa: nesciunt ubi corruant (Pr 4, 19).
O mundo encontra-se na cegueira espiritual
Jesus Cristo, diz o Apóstolo São João, é a verdadeira Luz, que ilumina todo homem que vem a este mundo. Achava-se no mundo, e o mundo foi feito por Ele, e o mundo não o reconheceu: veio à sua própria casa, e os seus não o receberam[7].
Por isto, Jesus Cristo dizia a seu Pai: Pai santo, o mundo não vos conheceu: Pater juste, mundus te non cognovit (Jo 17, 25).
O mundo, diz São Bernardo, tem suas noites, e são frequentes. Que digo eu… que tem suas noites! O mundo baixa-se, ai, nas mais profundas trevas, jamais vê a luz. A perfídia dos judeus é uma noite; é-o também a ignorância dos pagãos, a depravação dos hereges; a conduta carnal e animal dos maus católicos também é uma noite, e noite profunda. Com efeito, não reina, por acaso, a noite ali onde não se encontra a inteligência das coisas de Deus?[8]
As trevas se achavam sobre a superfície do abismo, diz o Gênesis: Tenebrae erant super faciem abyssi (Gn 1, 2). Mas, o mundo é a superfície dos abismos do inferno; está coberto com a negra fumaça que as chamas do inferno exalam abundantemente.
As trevas cobriram a terra, a noite rodeia aos povos, diz Isaías: Quia ecce tenebrae operient terram, et caligo populos (Is 60, 2).
Lê-se que, no dia da morte de Jesus Cristo, densas trevas cobriram a terra toda: Tenebrae factae sunt super universam terram (Mt 27, 45). Estas trevas não desapareceram, todavia, para os homens culpáveis e ímpios.
As máximas do mundo, sua moral corrompida, sua conduta, seus escândalos, sua incredulidade etc. provam que está submergido nas mais horríveis e perigosas trevas. Por isso o Real Profeta chama-a terra do esquecimento: Terra oblivionis (Sl 87, 13).
Causas da cegueira espiritual
1.° As paixões são a primeira causa da cegueira espiritual. Vosso olho é a luz de vosso corpo, diz Jesus: Lucerna corporis tui est oculos tuus (Mt 6, 22). O que o olho é para o corpo, a inteligência é para a alma. Porém, a aquele que caiu sob o jugo das paixões, já não tem inteligência; está embrutecida. Quando o fogo da concupiscência devora, diz São Gregório, já não se pode divisar o sol da inteligência: Cum aliquem super cecidit ignis concupiscentiae, videri abe o nequit sol intelligentiae (Moral.). Caiu fogo sobre eles, e não viram mais o sol, diz o Salmista[9].
2.° As riquezas são a segunda causa da cegueira espiritual. As riquezas cegam a alma. Daqui é que os poetas gentios dizem que Pluto, deus da riqueza, é cego de nascimento.
3.° Causa: a preguiça espiritual, a tibieza.
4.° Causa: a corrupção do coração. O insensato diz em seu coração: Não há Deus. Dixit insipiens in corde suo: non est Deus (Sl 13, 1). Quanto mais se cai e mais se permanece no pecado, mais alguém afasta-se de Deus, que é a Luz Incriada, de Quem nos vem toda claridade.
Há outras causas da cegueira espiritual:
5.° A imprudência;
6.° A imprevisão;
7.° O orgulho.
Sobretudo o demônio cega-nos
Se, todavia, nosso Evangelho, diz São Paulo, está encoberto, é somente para os que se perdem que está encoberto; para esses incrédulos, cujo entendimento o deus deste século cegou para a luz do Evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus: Quod si etiam opertum est Evangelium nostrum, in iis, qui pereunt, est opertum; in quibus Deus hujus saeculi escoecavit, mentes infidelium, ut non fulgeat illis illiminatio Evangelii gloriae Christi, qui est imago Dei (2 Cor 4, 3-4).
O deus do século é o demônio que é o deus dos que vivem segundo o mundo: é seu deus, não porque lhes tenha criado, senão porque lhes guia com suas funestas sugestões e com maus exemplos, e porque exerce sobre eles seu império. É pai da mentira, do orgulho e do erro. Começou por fazer cegos a Adão e Eva. No transcurso dos séculos, jamais vacilou na tarefa de procurar fazer cegos os homens e aos povos. Todos os que obedecem a Satanás, que se entregaram a ele, terminam por agir em consequência da mais deplorável cegueira. Porque devemos esperar do demônio somente desgraças nesta vida e, sobretudo, na outra. Colocar-se nas mãos de um inimigo cruel e implacável, daquele que foi homicida desde o princípio, entregar-se a um leão furioso, a um lobo faminto, é uma cegueira levada à loucura e ao frenesi e, sem embargo, isto e muito mais é o demônio.
Contai o número dos cegos espirituais pela multidão daqueles que cumprem a vontade do demônio e são suas vítimas.
Devastações e desordens produzidas pela cegueira espiritual
1.° A cegueira espiritual mata a fé;
2.° Torna o homem estúpido. O cego espiritual já nada compreende das coisas de Deus. Pouco importa-lhe saber nem de onde vem, nem onde está, nem aonde vai;
3.° A cegueira espiritual destrói a sabedoria. Faltará a sabedoria a seus sábios, diz o Senhor pela boca de Isaías, e desaparecerá o dom do conselho de seus prudentes: Peribit sapientia a sapientibus ejus, et intellectus prudentium ejus abscondetur (Is 29, 14);
4.° A cegueira espiritual faz os homens indóceis; já nem à própria verdade querem obedecer. Isto é o que São Paulo lança ao rosto dos Gálatas, dizendo- lhes: Gálatas insensatos; quem vos fascinou até ao ponto de que já não obedeceis à verdade? O insensati Galatae, quis vos fascinavit non obedire veritati? (Gl 3, 1);
5.° A cegueira espiritual destrói a vida divina. (Os cegos espirituais) tem o entendimento obscurecido, diz São Paulo aos Efésios, e estão inteiramente alheios de viver segundo Deus. Por causa da cegueira de seu coração: Tenebris obscuratum habentes intellectum alienati a vida Dei, propter coecitatem cordis ipsorum (Ef 4, 18). Se dizemos que estamos unidos a Deus, e andamos nas trevas, mentimos, diz o Apóstolo São João: Si dixerimus quoniam societatem habemus cum eo, et in tenebris ambulamos, mentimus (1 Jo 1, 6). E qual sociedade pode existir entre a luz e as trevas?, pergunta São Paulo: Quae societas luci ad tenebras (2 Cor 6, 14);
6.° A cegueira espiritual engendra todas as tentações. Muito bem podemos aplicar a esta cegueira aquelas palavras do Salmista: Ordenastes às trevas, e apareceu a noite; então as feras das florestas saem dentre as sombras: Posuisti tenebras, et facta est nox; in ipsa pertransibunt omnes bestiae sylvae (Sl 103, 20). Os ladrões buscam as trevas; o demônio, que despoja de toda virtude, não deixa de ir em busca dos cegos espirituais, e usurpa-lhes todo bem que possam ter;
7.° Os cegos espirituais caem de abismo em abismo, vão de crime em crime, submergem-se no mal, arrastam-se entre toda classe de manchas, e perecem no meio do lodo. Param na putrefação, como os cadáveres na tumba;
8.° A cegueira espiritual leva ao endurecimento.
Quão desgraçados são os cegos espirituais
Não conhecendo seu triste estado, o cego espiritual não trata de sair dele. Crer não ter necessidade de nada; e não vê que é pobre, miserável e que se acha nu. E o homem constituído em honra não teve discernimento, igualou-se com os insensatos jumentos, e tornou-e como um deles. Este seu procedimento é causa de sua perdição; e, contudo, ainda virão alguns que se comprazem em louvá-lo (Sl 48, 13-14).
O cego espiritual anda errante pelo deserto do vício, e não acha o caminho da cidade das virtudes: Erraverunt in solitudine in inaquoso, viam civitatis habitaculi non invenerunt (Sl 106, 4). É como uma daquelas estátuas de que nos fala o Real Profeta: tem boca e não fala; olhos, e não vê; pés e não anda; nariz e não sente; tem mãos, e não toca; pés e não anda: sua garganta não produz som algum (Sl 113, 5-7).
Considerai, diz São Paulino a Severo, a vida que os cegos espirituais levam, e os vereis semelhantes ao cavalo cego que dá incessantes voltas preso a uma estaca. Depois de ficarem diariamente rendidos de cansaço, chegarão à morte sem haver dado um passo até o céu (Epist. IV).
Ó cegos filhos de Adão! Porque amais a vaidade e buscais a mentira? Porque preferis as coisas transitórias às imperecíveis, o desterro à pátria, a terra ao céu, a criatura ao Criador, o vício à virtude, um estranho a Jesus Cristo, o demônio a Deus, o tempo à eternidade, a morte à vida? Porque, por um prazer vil e momentâneo, exponde-vos aos pesares, às dores, a uma morte deplorável e às chamas do Inferno?
Castigos da cegueira espiritual
1.° A cegueira espiritual atrai a cólera de Deus. Obnubilam-se seus olhos, diz o Salmista, a fim de que não vejam, e achem-se sempre encurvado seu dorso sob o peso da escravidão. Descarregai sobre eles vosso furor, Senhor, e cobri-os com o fogo de vossa cólera: Obscurentur oculi eorum, ne videant, et dorso eorum semper incurva. Effunde supere os iram tuam, et furor irae tuae comprehendat eos (Sl 68, 24-25);
2.° Deus abandona ao cego espiritual. Meu povo, diz o Senhor, não escutou a minha voz; Israel não veio até mim, e Eu os entreguei aos desejos de seus corações; afundaram-se em suas vãs invenções: Non audivit populus meus vocem meam; et Israel non intendit mihi. Et dimissi eos secundum desideria cordis eorum, ibunt in adinventionibus suis (Sl 80, 12-13).
Abandonarei a este povo, diz o Senhor; ocultar-lhe-ei o meu rosto; e será consumido; será vítima de todos os males e todas as aflições apoderar- se-ão dele: Derelinquam eum, et abscondm faciem meam, et abiitvagus in via cordis sui (Is 57, 17);
3.° O cego espiritual castiga-se a si mesmo com suas próprias mãos. E agora, olha como a mão do Senhor cai sobre ti, diz São Paulo à Elimás, o mago, e te deixará cego, já não verás mais a luz do dia: Et nunc ecce manus Domini super te, et eris coecus, non videns solem (At 13, 11). O mesmo sucede ao cego espiritual: não quer ver; a mão de Deus deixa-se cair sobre ele, e a cegueira é sua pena, seu mais terrível castigo. Mais, esta pena é um mal sem mistura de bem algum. Sofre, porém, sem mérito; os sofrimentos de que padece, e que, por si sós, são um castigo espantoso, chegam a ser um crime; de tal sorte que se encontra castigado não somente por haver fechado os olhos à luz, senão também pelo que sofre, pois, se sofre, é porque o quis;
4.° O céu está fechado para sempre ao cego espiritual. Não quiseram conhecer os meus caminhos, diz o Senhor, pelo que jurei, irado, que não entrariam no lugar de meu descanso: Non cognoverunt vias meas, ut juravi in ira mea si introibunt in réquiem meam (Sl 114, 11).
Diz a Escritura que os anjos cegaram aos habitantes de Sodoma, de modo que jamais puderam encontrar a porta da casa de Ló: Percusserunt coecitate, ita ut ostium invenire no possent (Gn 19, 11). Tal é o castigo que Deus impõe aos cegos espirituais: não encontram mais nem o caminho, nem a porta do céu;
5.° O cego espiritual desce ao inferno. Das trevas da cegueira cai nas trevas eternas: Ejicientur in tenebras exteriores. Abandonando-se aos criminosos prazeres da vida presente, diz São Gregório, não faz outra coisa a alma cega que lançar-se com os olhos fechados no Fogo Eterno? Anima perversa, dum in praesentis vitae oblectationibus se deserit, quid aliud quam, clausis oculis, ad ignem vadit (Lib. Moral.).
Pesar decorrente de se fechado os olhos
Ouvi a Sabedoria: Os ímpios, os cegos, morrerão sem honra, e estarão com eterna infâmia entre os mortos, porque o Senhor os ferirá sem que ousem abrir a boca; ver-se-ão em uma aflição extrema, e sua memória perecerá. Entrarão aterrorizados pelo pensamento de seus pecados, e suas iniquidades se levantarão contra eles para acusar-lhes (Sb 4, 19-20).
Então, apresentar-se-ão os justos com grande firmeza contra aqueles que os angustiaram e roubaram o fruto de suas fatigas.
A seu aspecto, os ímpios ficarão sobrecarregados de um espanto horrível. Admirar-se-ão pela repentina salvação dos justos que eles nem esperavam, nem criam. E arrependendo-se e gemendo na angústia de sua alma, dirão dentro de si: Vede aqueles a quem havíamos desprezado, e que foram o objeto de nossos ultrajes! Insensatos de nós! Críamos ser uma loucura sua vida. Acreditávamos que sua morte teria lugar sem honra. E agora podemos contá-los entre os filhos de Deus, e sua herança é a dos Santos!
Logo, tornamo-nos errantes fora do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós, e o sol da inteligência não se levantou em nosso horizonte. Cansamo-nos pelo caminho da iniquidade e da perdição. Temos andado por sendas difíceis, e ignoramos o que devia nos levar ao Senhor (Sap. V, 4-7).
Os cegos espirituais lançam-se no rosto três erros e três loucuras:
1.° O fato de terem andado errantes fora do caminho da verdade: Ergo erravimus a via veritatis (Sb 5, 6);
2.° O fato de terem agido de tal modo que a luz da justiça e da prudência não brilhou para eles; porque o desprezaram voluntariamente e quiseram permanecer nas trevas: Et justitiae lumen non luxit nobis (Sb 5, 6); pois Deus, em castigo por haver eles desprezado as luzes da graça, que a ninguém Ele as nega, negou-lhes as ulteriores e as mais eficazes;
3.° O fato de terem merecido que o Sol, isto é Jesus Cristo, que ilumina todo homem que em a este mundo, não se levantará para eles, porque não quiseram abrir-Lhe seu coração: Et sol intelligentiae non est ortus nobis (V, 6).
É uma verdadeira demência, diz São Cipriano; não ver é ignorar que as paixões enganosas não seduzem muito tempo. A noite existe enquanto não aparece o dia; porém, chegado o dia, e levantado o sol, é preciso que fujam as trevas e que cessem os crimes que antes se cometiam[10].
Cegos espirituais, logo virá o dia em vós vos arrependereis, porém, será demasiado tarde e inútil. Compreendei-o, e abri os olhos à luz quando ainda há tempo: trabalhai enquanto é dia. Aceitai a graça, agora, que ela se vos oferece, temerosos de que, depois de haver imitado às virgens néscias, não vos aconteça também sua triste sorte; e depois de haver, como elas, deixado pagar a luz de vossas lâmpadas, não a busqueis com lágrimas nos olhos, sem a conseguir encontrar. Temei ouvir dos lábios de Jesus Cristo, soberano Juiz, aquelas terríveis palavras que poderão exclui-los das bodas celestiais. Em verdade, eu vos digo, não vos conheço: Amen, dico vobis, nescio vos (Mt 25, 12).
Meios de sair da cegueira espiritual
Para sair da cegueira espiritual, é preciso:
1.° Viver da verdade, viver da imortalidade, viver da eternidade;
2.° Orar. Senhor, dizia o Salmista, iluminai minha vista, para que eu não durma na morte, e para que meu inimigo não me diga um dia: Eu venci. Illumina óculos meos, ne umquam obdormiam in morte, ne quando dicat inimicus meus: Praevalui adversus eum (Sl 12, 45). Deus meu, dissipai minhas trevas: Deus meus, ilumina tenebras meas (Sl 17, 29);
3.° Aproximar-nos de Deus e permanecer próximo d’Ele: assim veremos mais claramente: Accedite ad eum, et illuminamini (Sl 33, 6);
4.° Abrir os ouvidos e os olhos à fé: Surdi, audite; et coeci, intuimini (Is 42, 18);
5.° Levantar-se, sacudir a preguiça espiritual, a tibieza. Jerusalém, levanta-te; recebe a luz, porque chegou a tua luz e nasceu sobre ti a glória do Senhor, diz Isaías: Surge, illuminare, Jerusalem, quia venit lumen tuum, et gloria Domini super te orta est (Is 60, 1);
6.° Evitar toda protelação em agir. Andai, diz Jesus Cristo, enquanto tendes luz, a fim de que as trevas não vos surpreendam: Ambulate dum lucem habetis, ut non vos tenenbrae comprehendant (Jo 12, 35);
7.° Ir a Jesus Cristo, que é o Caminho, a Verdade e a Vida. Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue, diz Ele, não andará entre as trevas, mas terá a luz da vida: Ego sum via, et veritas, et vita. Ego sum luz mundi; qui sequitur me, non ambulat in tenebris, sed habebit lumen vitae (Jo 14, 6; e 8, 12).
Via: Rumo a Santidade
Referências:
[1] Caecitas, quam solus removet illuminator Deus, et peccatum est, quo in Deum non creditur, et poena peccati, qua cor superbum digna animadversione punitur; et causa peccati, cum aliquid mali, coeci cordis errore committitur (Lib. V, Contra Julianum).
[2] Sicut sol a crecis, quamvis eos suis radios vestiat, sic a stultitiae tenebris lumen Dei non comprehenditur (Lib. I depec. etMer., c. XXV).
[3] Quid stupentia? Ubi summus? Quis est iste qui nos elidit somnna? Quae est ista, quae nos tenet, oblívio letalis? Quaere nos coelho mutamus terram? Quare non caducis eminus aeterna? Quare non perituris manentia comparamus? (Serm. V).
[4] Dixerunt: Non videbit Dominus, nec intelleget Deus Iacob. Intellegite, insipientes in populo, et stulti aliquando sapite. Qui plantavit aurem non audiet? Aut qui finxit oculum, non considerat? Qui corripti gentes non arguet? Qui docet hominem scientiam (Psalm. XCIII, 7-10).
[5] Caecus est qui supermãe contemplationis lucem ignorat; qui praesentis vitae tenebris pressus, dum veram lucem nequaquam diligendo conspicit, quo gressus operisporrigat, nescit (Pastor., c. XI).
[6] Noli cadere in peccatum, et non tibi occidet his sol; si tu faceris casum, tibi faciat occasum. Si videre lumen cupis, esto tu lux; si enim tenebras et tenebrosas cupiditates ames, obtenebrabunt, imo excaecabunt te (Tract. II in Joann).
[7] Erat lux vera, quae inluminat omnem hominem venientem in mundum. In mundo erat, et mundus per ipsum factus est, et mundus eum non cognovit. In propria venit et sui eum non receperunt (Ioann. I, 9-11).
[8] Habet mundus noctes suas, et non paucas. Quid dico quia noctes habet mundus, cum pene totus ipse sit nox, et totus semper versetur in tenebris? Non est judaica perfídia, noz ignorantia paganorum; nox herética pravitas nox etiam catholicorum carnalis animalisque conversatio. Na non nox, ubi non percipiuntur ea quae sunt Spiritus Dei? (Lib. Consid.).
[9] Supercecidit ignis, et non viderunt solem (Psalm. LVII, 9).
[10] Haec est vera dementia, non cognoscere et nescire, quod fallaciae non diufallunt; Non est tamdiu quamdiu elucescit dies; clarificato autem die, et sole aborto, luci tenebras et caliginem cedere, et quae grassabantur latrocinia cessare, necesse est (Epist.).
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